Cartas de Junho (16)


Foto cedida por Magno Herrera Fotografias


A META É APROVEITAR AS OPORTUNIDADES DE TODOS OS DIAS E PRODUZIR COM O QUE FOR POSSÍVEL.”

Esperei pacientemente que ele se cansasse de toda aquela vida regrada. Eu sempre soube que em determinado momento ele perceberia que aquilo não era vida para ele. Aquela mulher chata e toda aquela inclinação em viver para o próximo na verdade não lhe pertencia, mas não foi isso o que ocorreu.

Eu desencarnei antes e, apesar de estarmos ligados por tantos erros cometidos no passado, ele conseguiu se desligar de mim, fez alguns atos caridosos que o afastaram do meu convívio por completo e quando desencarnou nos perdemos de vez. Como sofri... Eu aguardava por ele e nos vales sombrios era só a sua imagem que me consolava.

Eu esperei tanto e quando percebi que ele havia desencarnado, me desesperei. Eu me perdi dele e resolvi procurá-lo por toda parte, mas me surpreendi muito quando o encontrei no berço tão frágil, desprotegido. Eu vi que havia uma mulher velando por ele, um Espírito como eu, porém tão linda e luminosa. Eu fiquei de longe e me mantive assim durante toda a infância e adolescência quando eu me fortalecia para atuar, mas de que forma? Os pais me enfrentavam. Falavam de disposições de cristão, de postura de homem de bem. Tudo para distanciá-lo de mim. Ninguém notava que eu estava em sofrimento? Ninguém percebia o quanto eu o amava? Eu achei que ninguém podia me ver e sentir os meus sentimentos até que vi meu querido Nivaldo chorando. Isso arrebentou o meu peito de tanta dor.

Eu não queria que ele sofresse, apenas queria que estivesse ao meu lado como antes. Ele chorou e a mulher luminosa se aproximou de mim e conversamos. Ela disse que ele sentia tudo o que eu sentia e ele sofria com isso. Ela informou que ali não era o local apropriado para mim e que se eu realmente o amasse deveria me refazer, permitir que ele pudesse trilhar esta nova oportunidade que lhe foi oferecida para avançar. Disse ainda que aqueles que realmente se amam não se separam para sempre. O amor é livre e nunca egoísta.

Eu chorei tanto porque achei que nunca iríamos nos reencontrar, mas eu o amo e preferi deixá-lo livre. Fui socorrida e compreendi que permitiram todos aqueles anos no contato com aquela família para que eu pudesse melhorar e hoje sei que a minha chance chegou. Meu amado Nivaldo irá me receber como sua filha em breve. Serei filha de uma moça tão jovem e, apesar das famílias não desejarem a união de ambos eu espero que consiga consolidar meu processo reencarnatório. Ninguém chega na barriga errada, nem nasce por engano. Estou apreensiva, mas tenho fé que conseguirei ser amada por todos.
Com carinho JÉSSICA.
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Existem inúmeros artifícios que podem ser utilizados quando desejamos perseguir alguém. Quando atravessamos os vales sombrios muitos conseguem visualizar nossas intenções estampadas em nosso semblante espiritual e nos pegam para tutelar. Tão logo atravessei já me aliei num grande grupo de entidades vinculadas ao mal. Todo o meu intento era fazer-lhe sofrer e, para isso, eu fui capaz de realizar alguns delitos que me foram exigidos. Não havia me arrependido até então, mas o pior é que quanto mais se produz o mal, mais se colhe o mal, mais se está no mal. Eu piorei muito. A perna que apresentava um pequeno ferimento passou a expurgar uma coleção fétida, era como um veneno e quando consegui me aproximar do meu ofensor, me aproveitei das chagas que possuía para lhe fazer sofrer.

Aos poucos, o companheiro das perversidades de outras épocas, passou a sentir a perna irritar e a dor foi insuportável. Não havia medicação que pudesse melhorar. Tratamento nenhum podia amenizar a dor terrível. Eu me comprazia, mas no fundo imantava uma dor para nós dois. Meu inimigo ficou prostrado porque não conseguia mais andar e eu, que achava que isso iria me felicitar, estava doente e também me arrastava. Necessitei compreender que éramos muito semelhantes e ele foi conduzido até um local que faziam tratamentos espirituais para se tratar, mas também para ser precavido da minha presença e ser orientado quanto a sua conduta cheia de atos falhos.

Nós éramos muito parecidos e isso me fez perceber que eu nunca quis ser como ele, nunca. Naquele dia eu me irritei tanto, eu gritei e vi tantos sofredores naquele local de luz. Eu não queria ser tratado, eu queria sumir. Eu não queria me lembrar de mais nada. Eu queria apagar aquela vida em que estivemos ligados pelo sangue e ele me traiu com minha esposa. Eu não podia suportar lembrar daquela traição. Eu chorei e me fizeram adormecer para acordar deste lado onde todos são tão bondosos comigo. Estou me tratando porque ainda não perdoei aquele que foi meu irmão, que me traiu.

Após sair de perto dele, Teodoro foi melhorando e já consegue andar. Eu estou lúcido e tenho me esforçado, sei que não sou vítima e acredito que Deus tem plano certo para cada um, assim como somos nós que atraímos nossos reajustes. Que Deus seja louvado.
JEREMIAS.
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Tolice achar que só um de nós é o ruim. Todos nós cometemos erros e recebemos oportunidades de reparar, mas são tantos que preferem se vincular à vingança. As lembranças são muito fortes, doutor.
– eu disse no primeiro dia de terapia. Chorei tanto que precisei adormecer e só acordei depois de três dias. Estava exausta e não queria recordar, mas era preciso. O tratamento é longo e sem ele, eu não posso recomeçar, ou seja, nada de reencarne. Aqui é bom, muito bom.

Existe bondade em toda parte e eu fico no alojamento de moças que são alegres e brincalhonas. Sempre tive dificuldade para me socializar, mas com elas eu converso e sorriu. Cuido da horta e adoro os passarinhos. Nos dias de tratamento eu prefiro não conversar porque fico tensa e apreensiva, ainda tenho medo das lembranças. São fatos reais, vivos. Deste lado não existem barreiras para tempo e espaço quando necessitamos do tratamento que realizam. Já soube compreender que os envolvidos não podiam modificar sua natureza ao meu lado. Um monte de gente ruim que está ligado no mal o tempo todo não consegue se reformar.

Depois de algum tempo parece que o desencarnado é que é do mal, mas eu não fui sempre assim. Eles fizeram comigo o que não se faz com ninguém e como perderam as lembranças ao se ligarem ao corpo, se tornam bonzinhos?
Quando eu senti a aproximação deles me desesperei. Aqueles dois podiam fazer mal novamente com outra moça como eu. Tentei de todas as formas separá-los, mas fui levada a crer que Deus sabe de todas as coisas.  Eu precisei fazer o mal para ser socorrida. Eles se assustaram com minha presença e pediram ajuda, eu fui a beneficiada. Dá pra acreditar?
Todos nós somos livres para escolher nossos caminhos do bem ou do mal a todo tempo. Eu não posso perder meu tempo com eles. Desejo que se reformem para que nunca mais prejudiquem ninguém.

Agora vou cuidar de mim. Fazer pela minha evolução porque também já prejudiquei. Serviu para refletir que eu devo reparar o mal que cometi com outras pessoas. Nós somos motivo de elevação para outras pessoas. Atenciosamente.
JOCASTA.
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Confesso que me detive a pensar em como seria fazer a passagem nos últimos três anos. Eu fui católica, mas conversei com tanta gente. Sempre ouvi sem preconceitos e procurava aprender um pouco de tudo, nunca se sabe quando iremos precisar de informações peculiares... Me distraia e ainda aumentava o conhecimento, o vocabulário.
Não se perde tempo com gente, apenas se instrui. Mas depois daquela doença tudo ficou complicado. Um derrame que me colocou na cama e ficou difícil, doloroso e com uma solidão escura. Os movimentos não me obedeciam, então passei a desejar mudar de plano. Eu não seria capaz de maldizer a vontade de Deus. Não o compreendo, mas lhe tenho um apreço enorme, um respeito além da conta e nunca poderia blasfemar sua decisão.

Acreditava que se estava passando por dificuldades devia merecer e achei mais conveniente passar com paciência, apesar de tudo. Foram três anos esperando a morte e me questionando como seria, mas quando ela chegou eu tive medo. Medo de acabar, eu gostava dos meus pensamentos, não queria acabar. Tive medo de sofrer mais, de ter dor, mais do que eu já tinha. Tive medo de seres estranhos do invisível. Tive medo de nunca mais ver minha família.

Depois de tempos pensando consegui responder minhas próprias perguntas e entendi que Deus é perfeito de sabedoria e bondade. Eu desencarnei tão fácil.

Adormeci difícil naquela noite porque estava com dor e com cansaço, minha filha me deu um calmante e apaguei. Senti uma dor no peito e quando abri os olhos tinha um moço cortando uns fios do meu braço. Achei que estava sonhando e perguntei o que ele estava fazendo. Ele sorriu e estendeu a mão pra mim. Quando eu me estiquei para tocá-lo minha mão saiu do corpo e eu gritei. Hoje eu acho graça desta história. Ele me ajudou e, aos poucos, outros me tiraram do corpo por conta da dificuldade dos movimentos. No hospital eu fiz um longo período de tratamento para voltar a me movimentar e hoje estou totalmente recuperada.

Não perdi meus pensamentos. Estou viva, consciente de tudo e sou muito grata. Sou muito feliz. A meta é aproveitar as oportunidades de todos os dias e produzir com o que for possível. Atenciosamente.
CLAUDETE.   



Foto cedida por Magno Herrera Fotografias



MOSTREM O SEU AMOR. NÃO DÓI, NEM SE PERDE TEMPO FAZENDO ISSO. SÓ SE CONSTRÓI E FORTALECE MAIS O AMOR.

Era como se a adolescência não tivesse passado. Eu tinha vinte e nove anos e mantinha o mesmo comportamento desajustado. Sem compromissos, livre, aventureira. Trabalhava a semana toda, pagava as minhas contas, mas ainda morava com meus pais.

Me permitia ser cuidada por minha genitora nas menores delicadezas. Era ela quem cuidava das minhas roupas, da limpeza e arrumação do quarto, dos sapatos e da minha alimentação. Eu achava normal porque dizia estar muito cansada quando chegava em casa depois de um dia de trabalho onde, diga-se de passagem, ficava sentada confortavelmente.

Nos finais de semana o cansaço desaparecia e eu ia me divertir nos barzinhos badalados em companhia de minhas amigas. Perdíamos a noção das horas e eu não tinha motivos pra retornar cedo para casa.

Não tinha marido, filhos e meus pais sabiam que eu precisava me divertir, curtir minha vida, mas até quando? Eu dançava, bebia e conversava. Via uns homens lindos e saiamos para passar o tempo. Eu me deixava levar. O fato é que a vida era fútil e vazia. Chegava em casa pela manhã e a mamãe ainda estava à minha espera, mas eu ficava irritada porque achava que ela fazia isso para me reprovar, nem dava boa noite e me deitava quando todos já estavam se levantando. Me permitia descansar à vontade e quando me levantava almoçava bem, me organizava para sair novamente. Sempre foi assim até aquele dia fatídico.

Eu estava na noite me divertindo quando mamãe passou mal. Tentaram me avisar, mas eu tinha saído com um rapaz. Quando cheguei em minha casa encontrei o caixão de minha mãe. Ela estava sendo velada. Não consigo atinar sobre as horas. Quanto tempo demorei pra voltar pra casa? Quanto tempo durou todo aquele tormento. Eu sofri tanto, nem pensei que pudesse sofrer daquele jeito. Eu tive remorso porque nunca havia dito tantas coisas. Ela sempre cuidou de mim e nunca pediu nada em troca. Eu poderia ter sido mais carinhosa, mas cordial. Poderia ter dado o meu tempo pra ela e poderíamos ter conversado. Eu desejei conversar, mas era tarde demais. Eu desejei sentar-me no colo dela, mas ela estava tão fria e imóvel.

Eu vi papai pálido, sofrido e eu me senti culpada. Eu me culpei por alguns anos. Deixei minha vida mais estagnada ainda porque só trabalhava e voltava pra casa pra cuidar do meu pai. Assumi nossa casa e nossa vida, achei que não iria e não merecia ser feliz, mas ainda assim fui abençoada por Deus.

Fui visitar o túmulo de minha mãe e encontrei um homem que se comoveu com minhas lágrimas. Ele me chamou para tomar um café, me consolou e dois anos depois casou comigo e me deu a oportunidade de ter três filhos lindos. Eu pensei nela todos os dias da minha vida e ainda penso. Não reencontrei minha mãe deste lado porque ela reencarnou rapidamente.

Eu sou grata por tudo e digo sempre: mostrem o seu amor. Não dói, nem se perde tempo fazendo isso. Só se constrói e fortalece mais o amor.
BRUNA
10/06/17
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“A VERDADE DÓI, MAS REVELA QUEM SOMOS”

Ajuizado era o que todos pensavam de mim. Fui um nerd. Estudava e estudava sem parar. Eu amava os estudos, mas no fundo sempre achei que a sociedade era injusta com todos aqueles que não nascem dotados de aparências excepcionais.

Eu não era bonito e tive que me contentar com o raciocínio. As pessoas que são belas têm privilégios extras. Desde a infância as crianças mais bonitas são sempre as mais bem tratadas. Elas recebem carinhos de todos os lados, enquanto as feias ou com algum tipo de imperfeição são deixadas de lado. Não se esquivem em pensar no assunto porque é verdade. A verdade dói, mas revela quem somos. Quando uma adolescente é bonita, ela ganha os olhares de todos e isso a ajuda nos estudos porque todos a reconhecem, sabem o nome e ela fica popular, rodeada de amigos, todos desejam estar ao seu lado. Na fase adulta são os que formam casais e famílias. Só os feios sobram e são deixados de lado, os estranhos.

Eu fui tratado a vida toda como esquisito. Carregava meus livros e tinha com eles uma afeição porque a minha mente os entendia e não entendia ninguém. Eu não aceitava a exclusão, mas compreendia que era feio, estranho e antissocial.
Eu sei que tem feio que é simpático, mas eu era irritado mesmo. Não suporto hipocrisia e sempre disse o que eu pensava, por isso, não agradava ninguém. O ruim é que as pessoas fazem falta.

Eu chorava a exclusão. Eu sentia falta da sociedade na minha vida. Eu queria ser aceito e pensava coisas terríveis. Pensava em fatos que poderiam ter acontecido, mas nunca aconteceram. Nas moças que eu desejei namorar, nos caras que eu queria que se dessem mal e na aparência que eu queria ter. Foi tão ruim que quando desencarnei me vi totalmente modificado.

Como num passe de mágicas eu me transformei no meu objeto de desejo. Sai do meu corpo de feio e fui crescendo em massa, modificando meus traços, minha fisionomia se distorceu e eu obtive uma força semelhante a dos deuses de filmes. Me tornei lindo pra mim. Fui perseguido por um grupo narcisista e depois de tantas décadas de revanche, duelos para ver quem era o mais belo, eu tive um lampejo de lucidez e acordei deste lado sendo socorrido.

Quando me vi no espelho, me assustei porque eu estava todo disforme. Não tinha pensamentos belos, por isso, não podia ser belo. Faço o tratamento para adotar novamente forma humana e poder reencarnar. É muito difícil porque eu ainda penso nas mesmas coisas e, assim, não muda nada.

Converso com o doutor sobre muitas coisas e tenho melhorado, mas ainda existe revolta e isso não ajuda. Eu já sei que o importante são os sentimentos, não a aparência física, mas meus sentimentos não são tão bons. Tenho me esforçado, Deus vai me abençoar. Obrigado pela oportunidade e pela indulgência de todos.
ODAIR
10/06/17

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Eu queria tanto aquele brinquedo. Minha mãe trabalhava na casa da mãe dela. Nós tínhamos cinco anos e a nossa vida foi sempre complicada. Mamãe criava a gente sozinha porque meu pai nos abandonou. A mãe era forte e decidida, por isso, nunca passamos fome. Ela trabalhava fazendo de tudo um pouco, mas na casa da Graça ela fazia faxina duas vezes por semana porque era muito grande, tinha bastante serviço. Eu gostava de ir com ela porque a gente comia bem na casa da Graça. Comida de rico é diferente. Boa, gostosa e a mãe dela nunca miguelou comida pra ninguém.

Era boa a dona Celina, ela adorava a minha mãe. Dava roupa e comida que sobrava. Aí todo mundo passava bem na janta porque gente rica nem janta, sabe? A coisa foi dolorida pra mim porque eu cismei de entrar no quarto da Graça. A mamãe se distraiu e eu fui ver como eram os brinquedos dela. Adorava aquele ursinho, tão fofinho e cheiroso. O quarto dela era lindo. Tudo cor de rosa, arrumado, mas também era só ela de criança.

Por que será que quem pode não quer muita criança em casa?  Ela nem tinha irmão. Eu tinha cinco. Quando a Graça me viu com o brinquedo na mão fez um escândalo. Gritou, chorou, chamou a mãe dela e eu fiquei assustada. Que menina nojenta, eu pensei. As duas vieram correndo pra ver o que estava acontecendo e minha mãe tinha fogo no olhar. Dona Celina foi um amor, até quis me dar o ursinho, mas mãe me pegou pelo braço e disse que ia conversar em casa. Nunca esqueci a surra que levei naquele dia. Doeu muito, na alma.

Acho que aquela surra fez com que eu mudasse muitas coisas na minha vida. Decisões e escolhas que eu fiz depois daquilo, entendem? Eu nunca mais olhei pra Graça, a gente até brincava antes daquilo, mas depois, nunca. Nunca mais mexi em nada e ficava quietinha, enquanto a mãe trabalhava. Eu não queria que ela passasse vergonha porque foi isso o que ela me disse. Eu me tornei adulta e mãe. Nunca me esqueci desta história que influenciou na forma como criei meus filhos.

Eu entendo minha mãe e toda a sua história de vida. Não é que não perdoei, nem tem o que perdoar. Ela me criou com dignidade, assim como a meus irmãos que se tornaram pessoas de bem, trabalhadores e íntegros. Sei dos sofrimentos que ela passou, mas aquela surra me marcou muito. Eu sei que foi isso. Nunca bati nos meus filhos e, apesar de sermos pobres, com meu pulso firme, muito diálogo, consegui que trilhassem o caminho do bem sem pancadaria. Acho realmente que o amor educa, Jesus educa, conversa educa e soco, murro, pancada, só humilha e revolta.

Eu escolhi permanecer ao lado dela e ser boa. Agradeço por tudo, mas esta foi só a primeira das surras que levei. Apanhamos tanto e teve surra que eu nem mereci porque sempre tive medo dela e, por isso, nem me comportava mal, de medo. É isso.

Hoje eu faço tratamento porque não consigo esquecer as surras. Tinha medo quando as pessoas se aproximavam um pouco mais. Sempre achei que pudessem me ofender ou me machucar porque minha mãe me machucou e ela me amava. Amem seus filhos com indulgência. Ninguém gosta de sentir dor. Todos só desejam ser amados. Receber carinho também serve como meio de educação. Agradecida pelo espaço.
LUCIANA
10/06/17

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Ela bebia e esquecia até o nome. Tristeza ver a mãe caída no chão. A gente nem aguentava carregar. Íamos, meu irmão e eu, onde ela estivesse pra levar pra casa. Coitado! Ele era mais velho e achava que podia cuidar de mim. Fazia comida e limpava a casa. Tão bonzinho o Sebastião. Ele tinha dez anos e eu oito. Ela começou a beber porque o pai foi embora com a outra mulher dele e a gente é que pagou o pato. Sério, tristeza pra criança cair na mão de adulto irresponsável.

Eu não tenho raiva dela, mas fala a verdade? Aquilo não era mãe, véio. Ela perdeu a noção. Bebeu tanto que foi despedida do emprego que colocava comida na mesa e aí a coisa ficou feia mesmo. Ficava deitada o dia todo e nada de levantar, só pra beber cachaça. Será que ela não percebia que a gente era criança e precisava dela?

Meu irmão era tão esperto e resolveu engraxar sapatos. Nós pedimos material pro seu Manoel e ele era um homem bom, ajudou a gente. Os vizinhos sabiam da nossa dificuldade e ajudavam a gente levando os sapatos, mas a mãe pegava nosso dinheiro. Passamos muita fome e, aos poucos, nem queria ir pra escola porque tinha vergonha de ser apontado, todo rasgado, roupa sujinha.

Mas teve um dia que a gente se revoltou daquela vida. Eu já tava com treze anos e a gente disse que não ia dar mais dinheiro pra ela beber. O dinheiro era pra comprar comida, pagar a luz. Meu, ela ficou doida, correu atrás da gente e bateu tanto no Tião que ele já tava tonto. A gente ainda respeitava ela, não ia medir força né, cara? Ela pegou o ferro de passar roupa e tacou na cara do Tião. Aí foi uma tristeza que eu não gosto nem de lembrar.

Corri pra cima dele e chamava o Tião gritando, mas ele não respondia. Eu não tenho como gostar dela, entende? É minha mãe, mas não dá. Eu cuidei de tudo, enterrei meu irmão numa vala comum, não tinha grana pra nada, mas meus vizinhos, mesmo indignados, me ajudaram. Quiseram linchar minha mãe. Ela se escondeu e tudo mais.

Depois de alguns anos eu já tava viciado. Só com droga pra tirar a cena da minha cabeça. Sóbrio não dava não. Passei anos sem ver a cara dela e quando a vi ela tava um trapo pior do que eu. Eu não quero contato véio. Não quero. Levou tempo pra eu sair do vale, sair daquele pesadelo todo que é viver com droga no meio do inferno.

Vi meu irmão luminoso no meio de tanta gente perturbada, foi uma benção de Deus. Ele me salvou e Jesus sabe que eu o amo. Eu agradeço muito tá morando com meu irmão aqui na colônia. Eu nem acredito que possa ser tão abençoado. É felicidade demais pra mim cara. Só que dela eu não quero saber. Eu ainda não consigo. Sei que a gente vai ter que reparar.

Todo mundo junto de novo. Eu tenho que preparar bem minha cabeça pra tudo isso porque ela vai ser nossa mãe de novo pra ver se acerta dessa vez. Eu tenho medo meu camarada. Sei que ela não é de confiança. Colocou um homem, o amor de um homem na nossa frente. Nunca cuidou de nós. Mas, se Deus acha que é essa mãe que eu mereço, vamo lá. Eu só queria que a nossa história valesse pra um monte de mãe que tem filho com saúde e não sabe agradecer.

Mãe que trata criança de qualquer jeito. Mãe maluca que age com descuido, é imprudente. Eu sofri e não queria que criança nenhuma vivesse o que nós vivemos. Consciência é o que o povo deve ter. Se é pra tratar pior que bicho, não devia ter. Isso é o que eu penso. Desculpe a franqueza, doutor.
JOAQUIM
10/06/17


Foto cedida por Magno Herrera Fotografias


“CREIAM QUE TUDO É POSSÍVEL E TUDO DEPENDE DAS NOSSAS INTENÇÕES DE FAZER O BEM”

O arrependimento existe. Existiu sempre.
Mexe com a nossa cabeça saber que cometeu um crime, que prejudicou alguém. Eu passei na frente de todo mundo e só pensei em mim, foi isso o que aconteceu. Acho que é, por isso, que falam que o egoísmo, que é uma chaga que vem do orgulho, pode destruir a humanidade. A gente só pensa em si e sai fazendo o que acha que deve, mesmo que com isso leve tantos ao desespero e à dor.

Eu engravidei com dezesseis anos e eu fiquei horrorizada quando descobri porque eu não tinha a intenção de ter um filho com ninguém. Sempre gostei de me divertir, namorar e numa destas, engravidei. De repente, eu nem mesmo sabia quem era o pai daquela criança. Sei dizer que aquele convívio com um bebê dentro de mim me deixava muito irritada. Era como se aquilo pudesse acabar com a minha vida, com meus planos. Eu tinha planos. Queria estudar, ter uma carreira, mas isso tudo em paz, não com filho a tira colo. Nem tentei dialogar sobre o assunto com meus pais porque do jeito que minha mãe era melosa, na certa ia me fazer ficar com a criança. Eu me informei com algumas amigas mais velhas que haviam passado por situação semelhante e tratei de desfazer o mal feito. Eu abortei sem peso na consciência porque achava que era só uma sementinha que nem sentia nada de tão pequena que era.

Achava mesmo que enquanto estivesse tão pequenina não tinha ligação nenhuma comigo, só células... Era o que eu pensava. Não tinha religião, diferente dos meus pais que não saiam da igreja. Eu fiz o ato e passei muito mal, achei que fosse morrer, mas não morri. O problema é que a consciência me afligiu por toda a vida. Eu nunca consegui esquecer o que vivi. O lugar, a enfermeira, o sangue... Eu não posso esquecer (choro). Eu não sei explicar, mas é como se tivessem arrancado um pedaço de mim.

Alguma coisa mudou tão drasticamente que eu passei a ver tudo diferente. Tão imatura, tão infantil, foi como se a venda me fosse arrancada junto com aquele filho que eu rejeitei. Eu matei! Nada jamais foi igual. Eu vivi me punindo, me penitenciando. Tudo o que fazia me lembrava que poderia estar com ele nos braços. Conforme o tempo avançava, eu imaginava a criança comigo, crescendo também. Parei de sair. Estudei muito e realmente me tornei uma advogada muito séria e competente. Não tive condições de me relacionar com alguém porque achava que não merecia ter uma família. Eu não era de confiança. O que poderia fazer com outro filho? Sei lá, a cabeça da gente é muito complicada.

Eu ajudei muita criança com meu trabalho, muitas, mesmo. Era só o que eu queria me redimir, mas não era possível. Dentro de mim, eu mesma me castigava e vivia numa tristeza sem fim. Até que o desencarne chegou. Eu fui para o vale porque a minha consciência me arrastou para lá. Não havia ninguém me cobrando, era apenas eu. Sentia no íntimo do ser que algumas pessoas pensavam em mim, mas eu só via gente gritando e reclamando.
Eram homens e mulheres que cometeram crimes contra crianças. Cada um à sua maneira, eles sofriam e faziam sofrer e eu chorava. Não estava de posse da clareza mental. Eu procurava um bebê por toda a parte até que achei. Eu vi nitidamente um bebê lindo enrolado numa manta cor de rosa. Ela chorava e eu consegui segurar a bebê nos braços.

Eu a abracei e adormeci. Quando acordei depois de dois meses, estava aqui na colônia. Não compreendi aquela cena e nem como fui socorrida. O que sei é que eu cometi muitos erros e, por isso, fiquei naquele local por tanto tempo. O bebê não estava lá no umbral, minha mãe utilizou aquela imagem para que pudesse me resgatar. Ela está comigo e me ajuda a compreender porque tenho muitos questionamentos.

Estou fazendo o tratamento porque é muito difícil assumir que todos cometem erros. Sei que o Espírito que estava destinado para ser meu filho está reencarnado e, se tudo der certo, eu serei sua netinha. Ainda necessito de tempo para me harmonizar. Preciso de tantas coisas. Me desculpem se minha história não teve um final feliz.
ANTÔNIA
17/06/17

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“CREIAM QUE TUDO É POSSÍVEL E TUDO DEPENDE DAS NOSSAS INTENÇÕES DE FAZER O BEM”

Eu não queria doutor. Nunca quis aquela vida, me foi imposta. Existe mesmo este tal de livre arbítrio?

Acho que não porque ninguém quis saber do que eu achava. Simplesmente chegou uma cartinha me convocando. Eu fiquei chocado. Depois de tantos anos servindo aqui. Todo mundo me conhece e sabe que eu sou trabalhador. Tenho minha vida estabilizada e não sou de reclamar, mas por que comigo? Eu não queria voltar. Pra mim é uma tragédia esta tal reencarnação.

Todo mundo esquece tudo e tem que viver no meio de gente que não gosta pra reparar débitos. Eu não estou discordando d’Ele. De jeito nenhum, mas fala sério! Eu no berço, cercado de gente que não me quer. Frágil e indefeso do lado de gente que quer vingança? Quem é doido de aceitar? Ai me falaram que eu estaria sempre bem acompanhado. Quem era aquele moleque? Veio um rapaz falando que iria me acompanhar. Ser meu protetor. Eu não sei não. Fiquei muito desconfiado... Eu tentei. Me esforcei mesmo. Eu estudei. Descobri tantas coisas sobre os meus futuros pais. Sabe que dá pra saber de tudo o que eles gostam? Eu peguei todos os pontos que iriam fazer com que eles pudessem vir a gostar de mim, mas eu não queria estar com eles.

Aqui eu amo todo mundo, tenho minha vida, minha casa e minha família que eu amo. Eu não preciso de mais nada. Eles me falaram que eu não posso estagnar, ninguém pode. A morte pra mim é viver encarnado. Aí eu me esforcei e passei por todo o processo de aproximação. Por mais que tentasse, eu não gostei da minha futura casa e de nada que via. Eu passava mal e retornava pra cá atordoado. Eram fluidos muito diferentes dos meus. Eles também não me queriam. Mas eu tentei. Fiz o acoplamento e sentia todas as vibrações de desprezo da minha futura mãe, todos os pensamentos dela me prejudicavam. Ela não me queria e meu pai tentava disfarçar, mas sentia a mesma coisa.

Eles passaram a brigar e ele até bateu nela. Naquele dia eu passei muito mal, doutor. Era como um sono agitado, um pesadelo que me fazia contorcer. Eu não queria mais ficar. Eu desejava me separar deles. Sair dali a todo custo e comecei a me debater. Uma vontade tão grande de nunca mais passar por tudo aquilo que quando percebi estava de volta. Acordei no hospital. Nem conseguia abrir os olhos direito, me senti fraco, debilitado, agonizando. Eu ainda estava em tamanho reduzido quando o senhor me encontrou né? Demorou pra voltar ao tamanho normal e compreender que eu provoquei um aborto espontâneo.

Eu sinto muito, apesar de tudo. Eu sinto pelas lágrimas dela. Parecia que tinha mesmo que acontecer tudo isso pra que todos pudessem sentir tristeza com a minha partida. Meus pais e toda a família ficaram profundamente entristecidos. Eles se culpam por todos os pensamentos que tiveram. Minha futura mãe ora por mim todas as noites e isso fez com que eu tivesse forças pra melhorar mais rápido. Eu agradeço. Sei que iremos tentar novamente e agora eu vou me esforçar mais. Sinto muito por tudo. Fui covarde. Devo crer que Deus é Pai amantíssimo e concederá as oportunidades adequadas para que todos possam se reajustar. Sinto muito.
AMAURI
17/06/17


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“CREIAM QUE TUDO É POSSÍVEL E TUDO DEPENDE DAS NOSSAS INTENÇÕES DE FAZER O BEM”

Linda Soares eu ainda te amo.
Eu sempre te amarei e não existe nada que vá fazer eu me esquecer disso. Minha vida era perfeita. Eu não tenho vergonha de confessar meus mais profundos sentimentos. Eu ia me casar com ela e estava feliz. Vida simples com nossa casa, com todas as delicadezas de uma excelente dona de casa. Tudo tão simples, mas tão cheio de amor. Eu estava indo pegar meu terno. Faltavam dois dias para o casamento e foi um baque só. De repente, fui arrastado para o necrotério. Depois, rápido de novo, eu estava andando rumo à nossa casa. Eu nem entendi o que estava acontecendo.

Via muita gente andando pela rua, mas o céu tinha um tom diferente e as pessoas estavam agindo de forma estranha também. Eu só queria chegar em casa e descansar, mas não conseguia me lembrar do caminho. Eu vaguei por trinta anos. Andei sem parar. Não consigo me lembrar de muita coisa. É como se tivesse uma lacuna na minha memória.

Quando cheguei aqui eu achei tudo tão lindo. Via as pessoas trabalhando e conversando calmamente. Fui bem tratado, mas existe uma grande parte deste trajeto que não me recordo. Eu só me lembro dela e do baque. Da rua. Só. É terrível não ter lembranças.

Eu me sinto estranho no meio de todos aqui porque falam que a gente lembra de tudo. De outras vidas. Tem gente aqui que sabe de tudo. Desde a sua criação, dos momentos mais marcantes. Como se fosse encarnado que se lembra da fase infantil, sabe? Eu fico chateado porque não sei conversar com eles. Eu preciso do tratamento porque não consigo lembrar. O doutor falou que tem coisa que a gente não quer lembrar e esconde da gente mesmo. Eu acredito que seja verdade e como a mente da gente é poderosa eu posso ficar sem as minhas memórias por tempo indeterminado, então, terei de reencarnar. Eu fico me perguntando como será reencarnar deste jeito. Limitado das lembranças?

Me falaram que será um tipo de autismo, déficit cognitivo e vou aproveitar o corpo físico para resgatar o que é necessário para o meu tratamento. Eu até achei que estivesse ligado ao baque do carro quando bateu na minha cabeça. O doutor falou que não. Quando o dano é físico consegue recuperar mais rápido. Faz muito tempo, vou voltar. Eu ganhei um presente maravilhoso. A Linda será minha bisavó. Eu fiquei muito contente porque ela é a única lembrança que eu tenho e sei que ela irá me amar. Me perdoem por toda a confusão mental. Que Deus abençoe a todos.
MARVIN
17/06/17


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“CREIAM QUE TUDO É POSSÍVEL E TUDO DEPENDE DAS NOSSAS INTENÇÕES DE FAZER O BEM”


O trabalho é excelente. Existe vida em toda parte e quanto mais nos deparamos com casos difíceis, mais temos a certeza de que Deus nos ampara.

Todos aqui têm o intuito de auxiliar. Muitos chegam em desespero, com dores físicas e morais. É tudo parecido com encarnados, mas mais intenso. Eu já trabalhei em vários setores. No hospital cumpri algumas tarefas e vi coisas que muitos desacreditariam. É normal vocês acharem que é tudo fantasia de uma mente criativa. Tem gente que não quer nem pensar nisso agora, prefere se virar quando cruzar a fronteira, mas é bom se preparar. Saber que aqui tudo é possível. Encarnado auto suficiente quando desencarna, dá um trabalho (risos).

Fiquei um tempo como enfermeira e tem gente que chega e quer ser tratado com distinção. Como se fosse hotel de luxo. Tem gente que não aceita a morte de jeito nenhum e mesmo tendo o privilégio de vir parar aqui, ainda menospreza a oportunidade. É um local bem simples em termos de hospedagem, verdade, porém, a natureza que tem aqui, não tem em lugar nenhum.

Pessoas boníssimas, trabalhadores abnegados e cheios de inspiração. Orar amigos, pelos entes queridos que partem. Orar amigos para que vocês tenham tempo hábil para reparar todos os débitos que os levaram até aí porque a verdadeira vida é a nossa. A de vocês é tudo ilusão. Só serve para provar que estão avançando, mas tem gente que acha que está aí pra curtir, perde tempo e quando chega aqui se ofende. Fala que tinha que ter tido mais tempo. Tempo pra quê? Pra brincar de viver?

Maturidade espiritual porque se Deus enviou é porque todos têm condições de despertar em virtudes elevadas. Todos têm condições de ultrapassar os próprios limites da intolerância e do orgulho. Todos têm condições de passar pelas provas que os atormentam.  Pensar na morte, como vocês dizem, para que possam viver mais intensamente. Pensar que a morte só existe para o corpo e deste lado existe uma vida maravilhosa. Cheia de trabalho árduo para aqueles que gostam de ser úteis. Estudo sério para aqueles que gostam de avançar. Creiam que tudo é possível e tudo depende das nossas intenções de fazer o bem.

Que Jesus os conduza para o caminho de Deus. 
LUCINHA
17/06/17


Foto cedida por Magno Herrera Fotografias


“EU SEI QUE É POSSÍVEL O BEM TRIUNFAR E APENAS ELE SERÁ CAPAZ DE DESPERTAR AS CONSCIÊNCIAS”

Eu não consigo me lembrar quem proferiu a primeira palavra que nos fez distanciar. Naquele dia eu estava tão cansada. O Marcílio adoeceu e passamos a noite em claro. Era tanta febre, ele chorava e era tão pequeno. Eu já não sabia o que fazer. Nós morávamos no interior e uma casa era bem distante da outra. Meu marido não estava em casa porque sempre achava uma coisa importante pra resolver na cidade nas madrugadas. Eu estava desesperada e me lembrei dela. Peguei o menino nos braços, agasalhei o pobre e saí correndo para casa dela imaginando que conseguiria ajuda. Cheguei afobada e bati na porta. Fiquei surpresa quando ela, demorando pra atender, simplesmente me informou que estava ocupada, já era tarde e não podia abrir a porta. Eu implorei porque não tinha mais ninguém e meu menino estava fraquinho. Ela não abriu e com grosseria me disse pra procurar o marido. Eu fui embora e cuidei do menino com ervas e oração.

Deus abençoou que o Marcílio ficou bom. De manhã já mamou e sorria. De tardinha chega ela, toda acanhada falando que estava com marido em casa, com saudade e não podia abrir pra mim. Pra quê? Falei um monte. Eu estava tão cansada. Eu fiquei louca da vida. Achei que ela fosse minha amiga, mas naquele momento percebi que não tinha amiga nenhuma. Nós atiramos as verdades uma na cara da outra. Sabíamos tantos de nossos segredos que nos agredimos pra valer. Só falando às verdades que feriam. Ela me disse que meu marido não estava em casa porque vivia procurando rabo de saia na cidade. Eu falei que ela estava se divertindo com o marido, enquanto eu procurava ajuda, que ela nunca havia sido minha amiga de verdade. E por aí foi um verdadeiro desaforo.

Depois que ela foi embora eu chorei com o menino nos braços. Eu adorava a amizade dela porque com ela eu não me sentia sozinha, não tinha medo da solidão. Ela foi embora e nunca mais nos falamos.

Não sei dizer qual de nós foi a mais orgulhosa. Nos encontrávamos na missa e nem nos olhávamos. Toda a vizinhança percebeu porque nós éramos como irmãs e acabou de uma hora para outra. O tempo passou e eu decidi que não ia mais pensar nela, mas o tempo passou tanto que meu filho cresceu e um dia chegou em casa dizendo que estava muito apaixonado pela filha de quem? Filha da Nalva. Eu pensei que fosse castigo. O meu filho nem sabia da nossa história. A menina dela nem vi nascer, nem conhecia, mas já não gostei. Achei que fosse igual à mãe. Falei pra ele que ela não era de confiança. Do início ao fim coloquei empecilhos, mas não teve jeito o menino cismou com ela e depois que engravidou tive que aguentar.

Casaram. Isso depois de brigarmos de novo pra decidir qual deles foi mais imprudente. Eu não conseguia aceitar. Pensava que fosse castigo de Deus aquela mulher de novo na minha casa, por causa do meu filho que ela não quis ajudar. Demorou tanto até perceber que eu gostava da Nalva. Minha nora sofreu muito no parto e lá estávamos nós. Tentando fazer o nosso neto nascer. Tivemos que agir com união pra fazer nascer à criança. Foi tanto sofrimento que nos olhamos com carinho e união novamente.

Eu pedi desculpas e a Nalva também. Deu tudo certo e nosso neto nasceu lindo pra consolidar a nossa união e a nossa amizade. O importante disso tudo é que nós não devíamos ter ficado tanto tempo de cara feia, com raiva por causa de um fato banal. Uma amizade não devia se quebrar por bobagens. Nós devíamos fazer amigos enquanto encarnados. Devíamos aproveitar a oportunidade para fazer afetos e não para gerar animosidades.

Tudo o que Jesus nos pediu foi para amarmos ao Pai e uns aos outros e nem assim aprendemos. Eu sinto muito pelo tempo que ficamos distantes porque eu senti falta da Nalva em tantos momentos. Nunca mais tive uma amiga como ela. Quando o tempo passa não dá pra evitar tudo o que foi perdido. Devemos pensar muito bem antes de pronunciar as palavras para que as pessoas não se ofendam e para que a gente não venha a se arrepender.
CLEIDE
24/06/17

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Dizer o quê? Foi uma vida perdida. Foi sim. Eu namorei muito. Tive tantas mulheres. Entre os amigos eu era apontado como o conquistador. Era tão fácil. Já tinha uma postura de galã. Me expressava bem e vestia com roupas de época.

Tudo era utilizado para conquistá-las. Observava de longe e me aproximava com um jeito especial de andar. Quando chegava perto, elas já estavam fascinadas. Era difícil escapar de mim. Eram como presas. Me lembro de alguns rostos e depois que mantinha um romance relâmpago com elas era insuportável porque elas desejavam compromisso e isso eu não podia dar. Eu não era este tipo de homem. As mulheres são muito carentes – eu dizia para os amigos. Era o que eu pensava. Até que um dia fui convidado para o casamento de um amigo e fiquei confuso porque percebi o quanto existia amor e cumplicidade entre o casal. Eu saí com mais uma moça e quando acordei me achava estranho, cansado. Era como se estivesse doente. Minha aparência foi ficando diferente da habitual. Os traços de doença foram aparecendo e eu consultei um médico que me disse que eu estava com uma doença venérea. Não preciso discorrer do meu fim porque é dispensável.

O fato é que desencarnei vítima de meu próprio abuso. Eu viciei meus órgãos genitais e acabei adquirindo uma doença que me impossibilitou de continuar a jornada no corpo. Eu peregrinei com sofrimentos terríveis, mas o que me fez refletir é que eu poderia ter feito outra coisa da vida, porém usei apenas os órgãos genitais e minha vaidade, competi com outros homens e nunca considerei o sexo feminino como igual, nunca olhei para as mulheres como seres que sentem e merecem respeito. Eu as usava. Eu precisei sofrer muito para, padecendo no erro, perceber que eu é que era um carente, um doente sexual.

Eu perdi todas as oportunidades e pra quê? Eu faço tratamento há muito tempo e ainda não sei qual será o meu recomeço porque ainda tenho impulsos destrutivos. Segundo fui informado desta vez fui imprudente, mas já foi muito pior. Das outras vezes fiz muito mal às mulheres por causa do meu desejo incontrolável. Eu sei que será apresentado pra mim um novo plano e suponho que devo reencarnar como mulher. Acho que isso é fundamental.

Por conta de minhas experiências acho fascinante esta possibilidade que temos de renascer tantas vezes e podermos utilizar corpos de homem ou de mulher para suprir nossas necessidades. Eu acredito que um dia poderei olhar para o corpo humano e respeitar como é devido. Pretendo me envolver emocionalmente com alguém e vivenciar o sexo de uma forma mais pura e celestial como é o correto.

Sexo onde os dois sentem, os dois se envolvem, onde há uma troca de sentimentos e as pessoas podem se completar. O ser que é egoísta é egoísta em todos os aspectos da vida. No lar, no trabalho, nos estudos e também nos sentimentos. É egoísta no sexo. Eu não quero mais ser assim. Que Deus me ajude a me livrar dos meus vícios.
OSCAR
24/06/17

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Eu me lembro da latinha e do fogo. Aí subia fumaça e eu ficava bem louca. Era tanta gente. Começava já no início da noite e ia até de madrugada e a gente ria e via tudo diferente. Era uma cidade inteira, todo mundo largado. O cheiro ruim não incomodava mais, nem o frio. Tinha gente bonita que passava perto e tinha medo da gente, passava rápido e se questionava por que a gente fazia aquilo. É dose!

Ninguém consegue imaginar. Às vezes era na veia e eu chegava a implorar pros malucos deixarem um pouco mais porque não queria que a fissura passasse. Ficar acordado pra quê? Pra lembrar dos maus tratos? Da fome e da família que expulsou? Eu não queria não. O ruim é que não tinha dinheiro, mas mulher consegue sempre um pouco mais e assim ia levando. Até que um dia eu empacotei doutor. Empacotei e foi ruim porque morto não fala, nem chora, mas eu gritava e chorava pelos cantos.

Eu tinha medo e frio. Via umas coisas horrorosas e reclamava com Deus porque eu percebi que tava morta e achei muito abuso da parte dele me deixar naquela condição porque eu já era um farrapo de viva e de morta fiquei ainda pior. Não tinha justiça não? Que coisa louca eu ter sofrido tanto enquanto viva e piorar minha situação de defunta. Só piorou.

Quanto mais eu gritava com Ele mais ficava ruim. Um pessoal que corria atrás de mim sem cansar. Fala sério. Tem gente que quer morrer. Melhor pensar direito. Eu também tratava da minha vida de qualquer jeito porque achava que era melhor morrer, morri. E quando morri vi que tem que ter muita coragem pra morrer porque não é fácil não povo. Só quem fez arte pra saber, mas eu morri de morte matada. Eu fiz de tudo pra morrer e vaguei no vale do inferno. Quando cheguei aqui doutor nem acreditei. Sei lá como foi que aconteceu. Não importa. Eu fiquei feliz. Acho que nem mereço a ajuda. Elas cuidaram de mim e olha o meu estado.

Limpa e bem tratada. Eu nunca fui tão limpa doutor. Sou grata. Não sei como vai ser porque eu não tenho disciplina. Gosto de aprontar. Não sei como vai ser doutor. Queria que desse certo porque aqui é muito bom, mas eu sinto falta do pó. To pedindo pra voltar logo pra ver se eu esqueço, mas preciso do tratamento senão periga ser criança envolvida com drogas. Espero que dê tudo certo. Obrigada por cuidar de mim. 
LiLi
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Realmente o trabalho é intenso, mas muito prazeroso. Em cada um daqueles rostos eu percebo o quanto é bom poder doar. Doar atenção, cuidados, carinho. Tem muita coisa importante pra doar e o mais legal disso é que quanto mais a gente doa, mais forte a gente fica.

Quanto mais a gente doa, mais nos sentimos preenchidos pelo amor de Deus. Eu sei que Ele me escuta. Sei que Ele está comigo em cada um destes trabalhos e eu não me canso. Já senti medo de tratar alguns pacientes. Olhando nos olhos sombrios, vendo as garras e também as deformidades que se assimilavam com seus pensamentos, ainda conturbados.

Eu senti medo sim, mas nunca desisti de cuidar deles. Eu tive fé em Deus e nos Seus propósitos porque eu sei que posso ser eficiente na atuação que me proponho fazer. Já me senti insegura, achando que fosse incapaz de desenvolver meu trabalho e dependendo da pessoa que chega eu lamento as escolhas que meu paciente tenha feito. É muito sofrimento, é muita dor. Sei que não existem vítimas. Cada um escolhe o seu caminho e as pessoas ainda não perceberam que só podem sofrer as escolhas que fazem. Tem gente que ainda não percebeu e é tanta gente assim que vive uma ilusão e chega aqui profundamente debilitada.

Quando chega ainda é depois de muitas décadas de tormentos porque vão depurar nas regiões sombrias. Chegam com tantos déficits precisando de tudo. Nós trabalhamos com respeito pelas escolhas que fizeram e com indulgência porque já erramos muitas vezes. Deus é maravilhoso porque as pessoas só aprendem com suas próprias experiências. Não adianta tentar ensinar. Estamos tentando minimizar os sofrimentos. Será que um dia isso será possível?

Eu tenho fé no Senhor. Tenho fé na criatura humana. Eu sei que é possível o bem triunfar e apenas ele será capaz de despertar as consciências. Sejam seres iluminados.
VALDIRENE        
24/06/17





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